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Talento à enésima potência

A era dos ultra especialistas ficou para trás: em um mundo cada vez mais plural, abraçar nossas múltiplas habilidades é a chave para o sucesso e a realização

Você passa cerca de ⅓ do seu dia trabalhando. São pelo menos oito horas dedicadas ao cumprimento de tarefas e desenvolvimento de estratégias, seja na sua própria empresa ou como colaborador de uma organização. Talvez você até desempenhe bem a sua função e seja um funcionário extremamente dedicado, mas frequentemente se sente desmotivado ou pouco reconhecido. 

E se você pensasse um pouco menos em trabalho e mais em realização, deixando de encarar os seus interesses para além do escritório como simples hobbies, e abraçando-os como possibilidades paralelas? O Novo Mercado conversou com a jornalista, coach de carreira e expert em Branding Pessoal Bruna Fioreti, que garante: explorar a multipotência que existe em cada um de nós é o caminho para nos tornarmos profissionais mais bem sucedidos e inovadores.

No seu perfil você fala em “carreira multipotencial”. O que seria isso?

Investigo a carreira multipotencial há bastante tempo, e ela já apareceu para mim em diferentes literaturas, com diferentes nomes, como “Carreira Slash”, por exemplo. É uma carreira em que eu pego todos os potenciais, todas as habilidades que eu tenho, até os hobbies eventualmente, e tento combiná-los em um modelo específico. Vemos muito isso hoje em dia na chamada Gig Economy, que é essa economia “do bico”, em que os profissionais fazem vários jobs. Muitas vezes isso acontece por necessidade, então tem um lado que não é tão bonito nessa história. Por outro lado, é possível pensar também em uma economia que hoje gira muito em torno do propósito, de quem pode se dar ao luxo de trabalhar com um pouco de propósito. Essas pessoas costumam ser multipotenciais, porque vão aplicar seus diferentes potenciais para ganhar dinheiro e ter satisfação. 

Nesse contexto, fica até um pouco difuso o conceito do lazer junto com a profissão. Uma pessoa pode ter várias áreas de atuação, entre as quais ela divida, sim, os seus ganhos, mas principalmente o seu tempo, e o seu o seu lazer pode estar incluído aí. Para a maioria de nós, a tendência é que isso passe a ser cada vez menos uma escolha e se torne a única maneira de nos colocarmos no mercado de trabalho. 

É como se você juntasse todo o repertório que acumulou ao longo da vida, incluindo cursos e interesses pessoais, num grande caldeirão e começasse a pinçar, entre esses ingredientes, quais são as coisas que você pode fazer que combinam com o que o mercado está precisando agora. De acordo com esse cenário, você junta as suas habilidades e começa a oferecer diferentes tipos de produtos e serviços que te permitem juntar vários pontos de renda ou que, mesmo que não gerem renda, funcionem como um hobby e até contribuam para a sua saúde mental. Esse é o profissional multipotencial, e a tendência é que todos nós abracemos essa multipotência. 

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No livro “Peça-Chave”, Seth Godin fala que somos vítimas de uma “conspiração multigeracional” projetada para minar nossa criatividade e inquietação, em busca de uma aparente estabilidade. Você concorda que sofremos uma espécie de lavagem cerebral para nos encaixarmos em trabalhos nos quais não podemos aflorar nosso verdadeiro “eu”? 

Acho que o Godin tem uma visão interessante no sentido de incentivar as pessoas a procurarem o seu melhor. Ele tem um livro chamado “O Melhor do Mundo”, no qual ele busca muito incentivar o leitor a pensar isso: o que é ser o melhor do mundo? O melhor do mundo é aquele que é o melhor dentro do seu setor e que consegue entregar para aquele cliente aquilo que ele está precisando no momento. Isso é ser o melhor do mundo. 

Por outro lado, também é possível pensar nas pessoas que não conseguem ser as melhores do mundo de maneira nenhuma, porque por mais que elas tentem, por meio do seu mérito, conseguir alguma coisa, existem coisas que o mérito não alcança. Por isso que a meritocracia é uma falácia, e eu acho que cabe a nós, como profissionais da área, derrubar um pouco esses mitos, porque as pessoas começam a se sentir mal com coisas que não deveriam.

Ser muito bom em uma área não é garantia de que você vai ser bem sucedido. Então, assim como o Godin, eu acho incrível trabalhar com propósito, mas pode ser que em algumas fases da vida você não consiga. Às vezes você vai precisar viabilizar seu sonho trabalhando com coisas de que não gosta tanto. A felicidade profissional é importante, mas não pode mais ser a nossa única via de realização. Acho que ter essa clareza nos ajuda, inclusive, a enxergar os nossos privilégios e a valorizar mais os trabalhos que a gente tem, mesmo quando a gente não ama 100% do que faz.

A massa de trabalhadores hoje é composta principalmente por cumpridores de ordens, mas o mundo mudou. Como romper essa barreira e se tornar um funcionário criativo, um elemento central que pode fazer a diferença dentro de uma empresa?

Essa pergunta é incrível, porque realmente essa coisa do “não pensar” acontece muito mais do que as pessoas imaginam, mesmo nas empresas que se dizem inovadoras. Mas o que é inovação? Inovação envolve tecnologia, sem dúvidas, mas inovar é muito mais do que isso, vai muito além de ter boas ideias e ser criativo no dia a dia. Inovar é tentar romper com o que está sendo dito e pensar de uma maneira que não está sendo pensada. E para fazer isso você precisa sair, é aquela famosa frase do Saramago: “É preciso sair da ilha para ver a ilha.” 

Se você passa 24 horas por dia só focado no trabalho, aí mesmo é que você não vai conseguir ser inovador. Você tem que ter outros interesses, misturar referências para que, “sem querer”, a inovação venha. Às vezes, você fica lá se esforçando, trabalhando um tempão em cima daquilo e de repente você cansa. Aí você sai pra tomar um café e de repente vem uma ideia maravilhosa. 

Mas é sempre bom reforçar que uma ideia maravilhosa, por si só, não é inovadora. Ela precisa ser dividida com um grupo diverso, porque o contraditório é muito importante, para que se pense em maneiras de colocá-la em prática. A inovação hoje é muito mais do que um insight individual, ela é coletiva e está ligada a um repertório que seja amplo e que extrapole a sua área. Se a gente não se permitir mais pensar menos em trabalho, a gente não vai chegar nesse lugar. Ou a gente começa a revolucionar um pouco a nossa própria vida, descumprindo um pouco essas ordens, pelo menos na parte que nos é possível, ou a gente começa realmente a ampliar o nosso olhar para além do nosso umbigo.

Os recrutadores têm cada vez mais candidatos à sua disposição e menos tempo. Como se destacar em um mercado tão competitivo para conquistar o emprego dos sonhos?

Fazendo Branding Pessoal. Esse é um termo que muitas pessoas entendem de uma maneira equivocada, e hoje nas redes sociais nós temos muitos maus exemplos disso. Branding Pessoal não é postar foto da sua reunião para puxar o saco do chefe; é fazer a gestão da sua marca pessoal, no digital e fora dele, e isso acontece quando você começa a mostrar – mais apenas do que falar –  quem você é, quais são seus interesses, o que você tem a oferecer ao outro. Tem a ver com essa generosidade de dividir um pouco do seu conteúdo. 

Você pode fazer isso dando uma explicação para um colega no cantinho do café ou respondendo um e-mail de maneira gentil, quando ninguém está vendo, mas também deve colocar algumas técnicas em prática na frente dos outros. Não se trata de ficar se mostrando no trabalho como se fosse um pavão, mas de saber se colocar. Muitas mulheres, principalmente, têm dificuldade de se posicionar em reuniões e “murcham” quando são interrompidas, então é preciso ganhar um pouco de confiança e de força para colocar as suas ideias, além de saber quando colocá-las. 

Nas redes sociais, vale a mesma coisa: exista, apareça e seja lembrado, mostre os seus hobbies. É preciso existir no digital e fora dele com as suas principais características, porque hoje em dia todo mundo vai te procurar na internet. Quando um recrutador cruzar com o seu perfil, o que ele vai encontrar? Um pavão que fica falando das conquistas, ou conquistas de fato? Tem uma diferença grande aí.

Existem trabalhos que são realmente mais mecânicos e menos criativos. É possível humanizá-los e transformá-los mesmo assim?

Acho que às vezes é um engano pensar que alguns trabalhos podem ser poucos criativos. Dá para colocar um pouco de criatividade, um pouco do toque humano em todo trabalho. Por muito tempo se considerou que os cargos de tecnologia não eram criativos, mas foram eles que transformaram o mundo. Olha que loucura: os desenvolvedores são extremamente criativos, porque todo trabalho, no fim, é uma maneira de você ser remunerado por resolver problemas. Se você começar a pensar desta maneira, pode jogar criatividade em toda e qualquer tarefa que faça. 

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Ainda em “Peça-Chave”, Seth Godin diz que “organizar-se em torno da média significa que a organização trocou a alta produtividade do desempenho excepcional pela facilidade e segurança de um desfile interminável de performers medianos”. Você concorda com essa afirmação? Acha que muitas empresas hoje ainda relutam em “subir o sarrafo”?

Eu concordo e não concordo. A gente fala muito mal dos medianos porque a gente não quer se considerar mediano, mas a verdade é que o mundo é feito de medianos, não de pessoas acima da média. Essa é a parte da cultura do coaching que me incomoda um pouco, porque ela faz as pessoas acharem que toda hora têm que subir a barra. Às vezes é bom subir a barra, mas você não vai conseguir subir a barra o tempo inteiro.

Eu vi uma pesquisa interessantíssima, muitos anos atrás, que mostrava que as pessoas normalmente terão um ou dois grandes momentos disruptivos na vida. Essa pesquisa foi feita com acadêmicos, mas podemos afirmar, com certeza, que nós não vivemos no auge, vivemos no mediano. Uma empresa que pensa que vai conseguir viver sempre no auge vai quebrar. É só olhar para as big techs demitindo loucamente agora, nem elas conseguem se manter no topo o tempo inteiro, então eu não concordo muito com essa visão. A teoria é bonita, mas na prática a gente precisa dos medianos, porque os medianos são o mundo. E os medianos não são ruins, eles são importantes, são a humanidade. 

O aspecto com o qual eu concordo é que seria mais interessante que as empresas investissem mais nos talentos. Não necessariamente no talento técnico, mas nas pessoas: em fazer os colaboradores se darem melhor, em fazer as soft skills serem mais trabalhadas. Se isso acontecesse, aí sim, talvez a barra se elevasse, mas não no sentido de essas pessoas não serem mais medianas, mas de interagirem melhor e aí sim terem melhores resultados.

Além de conhecimento técnico em profundidade, o que é necessário para ser um colaborador peça-chave? Quais as soft skills mais valorizadas atualmente e como desenvolvê-las?

Vou destacar duas aqui. Uma delas é saber se relacionar com os outros, o que já inclui várias outras soft skills, como desenvolver sua generosidade, saber se doar um pouquinho, escutar muito bem as pessoas, aconselhar quando alguém vem pedir alguma coisa, e por aí vai. Cada um vai saber qual é o pacote de coisas que pode incluir dentro do relacionamento pessoal. 

Se relacionar bem com as pessoas é uma soft skill desejadíssima, porque às vezes a pessoa nem é tão boa tecnicamente, mas consegue sempre cargos altos, é querida, está sempre em bons empregos. Por que? Porque essa pessoa sabe se relacionar maravilhosamente, e para isso também é preciso se conhecer muito bem. 

Outra soft skill fundamental, apesar de um pouco menos óbvia, é saber ler bem o cenário. A maioria das pessoas não consegue ler mais o que está acontecendo porque as mudanças são muito rápidas. É absolutamente normal que a gente se sinta perdido nesse mundo, mas ler o cenário é o grande diferencial para você ser inovador, para ser visto, lembrado e conseguir um cargo mais alto.

E para conseguir fazer isso é preciso desenvolver a sensibilidade, o que pode ser feito de muitas maneiras. Às vezes, você vai desenvolver sua sensibilidade indo mais ao cinema, brincando com seus filhos, com seus pets, tendo mais contato com a natureza, lendo mais livros de ficção… Tem uma porção de coisas que você pode fazer para amplificar o seu repertório, inclusive sensorial. Recomendo um livro chamado “Super Sentidos”, que ajuda a entender como os nossos sentidos são amplos e como podemos amplificar nosso repertório de maneiras simples. Tudo isso pode, de maneira indireta, te tornar uma pessoa mais interessante, que vai também se relacionar melhor e, de quebra, ler melhor o cenário.

Qual a importância das interações no ambiente de trabalho e como a realidade do home office impactou isso?

Acho que ainda estamos descobrindo, mas o que já existe de percepção é que muitas vezes as pessoas acabam ficando piores nos relacionamentos, porque elas conseguem se relacionar no digital, mas existem sinais que são ancestrais no trato pessoal. Então, se você estiver em home office, é super importante marcar aquele barzinho ou aquele café de vez em quando com a galera, aparecer no escritório de vez em quando para não perder esse vínculo pessoal, porque ele faz falta para o ser humano. 

O colaborador que fica direto em casa foca menos na empresa, se torna mais individualista e sente menos aquela vibe de time que as organizações tanto valorizam. Por outro lado, o home office pode aumentar a produtividade, fazer com que ele tenha mais tempo e fique mais feliz. Então é uma faca de dois gumes, não existe uma resposta única.

Somos treinados desde cedo para sempre atingir a perfeição, mas sabemos que isso não é possível. Quais os impactos disso na nossa vida profissional?

São simplesmente desastrosos! Toda vez que a gente fica pensando que deveria ser perfeito ou sempre ganhar um Oscar na nossa área, a gente está acreditando numa grande mentira. Pouquíssimas pessoas vão ganhar o Oscar, o que não significa que as que não ganharam não contribuíram para a indústria do cinema, certo? 

Então, lembra quando eu falei dos medianos? Ser mediano virou uma coisa vergonhosa e péssima, mas a verdade é que é importantíssimo entender que tem momentos em que a gente vai render menos e outros em que vai render mais, mas a gente não vai brilhar 100% do tempo. 

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O impacto dessa cobrança pela alta performance fica claro com os números alarmantes de burnout, porque as pessoas tentam trabalhar muito mais do que conseguiriam para tentar atingir sempre um nível mais alto. Alta performance não é uma coisa para todo mundo, e se você não é uma pessoa de alta performance, não tem nada de errado com você. Então, a gente pode ter uma boa performance, uma melhor performance. A gente pode ser excelente, mas não precisa ser perfeito. 

Qual a importância de saber dizer “não” no ambiente corporativo, e como dosar os riscos ao fazer isso? 

Saber dizer “não” no ambiente corporativo, como em qualquer ambiente, é fundamental. Mas, no trabalho, o seu “não” tem que ser dado com uma excelente explicação técnica e com muita habilidade social. É preciso ter muita clareza do porquê por trás do seu “não” para poder defendê-lo, como se fosse uma apresentação de um projeto. 

Você também precisa saber para quem você vai dizê-lo, medindo as possíveis consequências e se planejando para isso. Quando você diz não, sempre desagrada alguém, por isso a justificativa tem que ser maravilhosa. É importante também sempre terminar a conversa “para cima”, oferecendo alguma outra boa entrega em troca. Por fim, escolha um bom momento para a pessoa que vai ouvir o “não”: ela é mais diurna ou noturna? Está num dia muito cheio? Tudo isso deve ser levado em conta. O “não” corporativo tem que ser estratégico.

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